Gerência de empresa privada por servidor público Autor(es): Claudio Rozza

O servidor público vincula-se de modo especial à Administração Pública sujeitando-se às determinações estatutárias. Ao estar investido no cargo por concurso público, deve cumprir sua função de acordo com o conjunto de competências que lhe são legalmente atribuídas. No exercício de sua função está sujeito ao cumprimento de deveres sendo-lhe proibidas determinadas condutas.

O desenvolvimento da atividade do servidor público atribui-lhe um singular caráter de dignidade. Em vista do exercício de sua função, não poderá exercer outras atividades, ainda que legais, honestas, idôneas, e fora do horário de seu expediente. Assim é que, zelando pela qualidade da atividade pública, proíbe-se ao servidor público o exercício de gerência de empresa privada.

Lei 8.112/90: Estatuto dos servidores civis da União:
Art. 117. Ao servidor é proibido: X – participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, salvo a participação nos conselhos de administração e fiscal de empresas ou entidades em que a União detenha, direta ou indiretamente, participação no capital social ou em sociedade cooperativa constituída par prestar serviços a seus membros e exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário.

Lei 6.174/70: Estatuto dos servidores civis do Estado do Paraná:
Art. 285. Ao funcionário é proibido:
VII – enquanto na atividade, participar de diretoria, gerência, administração, Conselho Técnico ou Administrativo de empresa ou sociedade comercial ou industrial:
a) Contratante ou concessionária de serviço público estadual;
b) Fornecedora de equipamento ou material de qualquer natureza ou espécie, a qualquer órgão estadual.

Há que se considerar que, no mundo dos fatos, podem ocorrer as seguintes alternativas, didaticamente separadas:
a) Gerência exercida de fato com ou sem vínculo empregatício;
b) Gerência exercida com ou sem cláusula apontando a responsabilidade gerencial;
c) Apontamento em cláusula da responsabilidade gerencial isolada ou em conjunto mas sem exercê-la de fato.

O primeiro passo é verificar se, documentalmente, pelo Contrato Social, resta comprovada a inserção do servidor como sócio e como gerente.

Todavia, não basta constar o nome do servidor como gerente da empresa no Contrato Social para tipificar infringência que tem como consequência a demissão.

Ainda que houvesse esporádicos atos gerenciais, a penalidade de demissão seria desproporcional ao modo como o bem jurídico foi ofendido pelo servidor.

A proibição objetiva preservar a boa, contínua, regular e zelosa prestação do serviço exercido pelo agente público.

Eis, para o caso, as luzes trazidas por José Armando da Costa, a projetarem-se sobre o impeditivo da gerência de empresa privada:
“Esclareça-se que emergenciais, esporádicas e isoladas providências, tomadas em favor da empresa pelo servidor acionista, não caracterizam o defeso gerenciamento previsto na infração disciplinar em lide. O que pode muito bem ocorrer em pequenas firmas, onde o servidor quotista, detendo a expressiva maioria do capital social, se veja, de repente, de inopino e de forma inesperada, abandonando pelo seu sócio-gerente. Diante de tais circunstâncias, obriga-se o sócio quotista a tomar algumas providências rápidas, inclusive a emissão de cheques para pagamentos inadiáveis (por exemplo, pagamento de tributos, taxas e outras obrigações sociais da empresa) e demais medidas pertinentes e urgentes, para evitar soçobro, o naufrágio e o arruinamento da sociedade, até que escolha alguém que possa tocar os negócios da empresa.
Agregue-se, porém, que essas excepcionais providências somente se justificam quando realizadas fora da jornada de trabalho da repartição, e desde que ocorram dentro de lapso de temporal de pequena duração.
Por fim, vale salientar que a norma proibitiva em comento – tendo como objeto de tutela a regularidade e a desenvoltura do serviço público – não se predetermina a proclamar e a assegurar a pobreza do funcionário público, como parece entender alguns chefes de repartição, os quais ficam inconformados e tresloucados diante de legítimos e honrosos sucessos conseguidos por quem, mesmo como funcionário público do Brasil, souberam aplicar bem as suas sacrificadas poupanças.” [1]

Só a análise de cada de cada caso concreto possibilita a busca da adequada norma a ser aplicada.

Se as testemunhas (fornecedores, clientes, empregados) são unânimes em declarar desconhecimento das atividades gerenciais, e se a checagem do controle de presença revela que não houve faltas, como subsumir à tipicidade a infringência caracterizada pela cláusula contratual em que aparece o nome de servidor com função de gerência?

Ainda mais que, na cláusula sobre a gerência, verifica-se que a função não é exclusiva do servidor público, mas dividida com o outro sócio.

Sob o aspecto formal, documentado pelo Contrato Social, o servidor, segundo cláusula específica, foi contemplado com as funções de gerência. Ainda que por infringência formal, há que se observar, para individualização da sanção, o princípio da proporcionalidade, tendo em vista, inclusive, a natureza e a gravidade da infração, os danos que dela provieram para o serviço público, e os antecedentes funcionais do servidor.

Quanto ao aspecto material, a propósito de desenvolvimento de atividades práticas de administração de empresa privada, mesmo constando assinatura do servidor em abertura de livros contábeis, e eventuais emissões de cheques para pagamento de fornecedores e tributos, por serem esporádicas, não se inserem na tipificação da proibição de gerência de empresa privada por servidor público.

Assim, embora constando o nome do servidor público em cláusula de Contrato Social com função de gerência da empresa, apurou-se que, salvo esporádicos atos gerenciais (emissão de cheques, assinatura em abertura de livros fiscais), não houve, de fato, o exercício efetivo de gerência.

No entanto, houve falta de zelo, de cuidado, em se permitir a inserção de seu nome como gerente, configurando infringência a deveres de lealdade e respeito às instituições constitucionais e administrativas a que serve, e inobservância a normas legais e regulamentares, o que poderia redundar em penalidade de advertência/repreensão.

Por outro lado, ainda que o servidor tenha se afastado de gerência de empresa privada, efetivamente exercida, antes da abertura de processo administrativo disciplinar para apuração do fato, tal circunstância não tem o condão de também afastar, por si só, a responsabilização do servidor. [2]

Fiscal de derivados de petróleo e outros combustíveis não conseguiu anular o processo que o demitiu mediante Mandado de Segurança impetrado junto ao Superior Tribunal de Justiça. Ao argumento de que se encontrava em licença sem vencimentos, foi contraposto o entendimento de que a licença para trato de interesses particulares não interrompe o vínculo existente entre o servidor e a Administração, pois continua o servidor obrigado ao respeito à legislação e aos princípios da Administração Pública. O argumento de que era apenas cotista de dois postos de combustíveis, geridos exclusivamente por sua esposa e por sua mãe, não encontrou guarida eis que, no entendimento do ministro, o fato de ter assinado fichas cadastrais das empresas das quais é sócio denuncia a prática de atos de comércio que não são permitidos, tornando cabível a sanção imposta, ou seja, a pena de demissão.[3]

Em outro caso, a Comissão processante concluiu que poderiam ser invocadas como atenuantes aos acusados de exercício irregular de gerência privada a primariedade, boa-fé, bons antecedentes, idoneidade e, que, ainda, não teria havido prejuízo ao desempenho e à qualidade dos serviços públicos prestados pelos acusados. Assim, a proposta de arquivamento foi aceita. No entanto, o processo foi anulado e indicada outra comissão processante, afastando o bis in idem.

Decidiu-se, por fim, que não fere os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade a imposição da pena de demissão aos servidores, se, ao final, resta provada a prática da participação da gerência na administração de empresa privada.[4]

A anulação ex-officio de processo disciplinar, conforme entendimento esposado pelo STJ, encontra respaldo no art. 169 da Lei 8112/90[5] e na Súmula 473/STF [6] e impede que se configure ofensa à coisa julgada administrativa ou bis in idem.[7]

De outra feita, foi preponderante para a manutenção da penalidade de demissão, como prova da participação na atividade empresarial, a realização de viagens para atender interesses particulares com prejuízo de suas funções.[8]

Professor-adjunto de universidade federal não teve sua alegação de que foi exigida sua participação na empresa em troca de recursos para a execução de projeto de sua autoria, tendo sido demitido por infringência ao art. 117, X, da Lei 8112/90. O nome do servidor surgiu em decorrência da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Correios.[9]

Tem-se que é proibido o exercício de gerência de empresa privada pelo servidor público, mas não atividades privadas. O servidor pode ser empregado de empresa privada ou prestador de serviços. A proibição reside no exercício de atividades incompatíveis com a função ou com o horário. Incompatível com a função exercida por auditor fiscal é a prestação de assessoria a empresas na área de sua atuação. E, de qualquer forma, não pode haver coincidência com o horário da prestação do serviço público.[10]

Por ocasião do lançamento do programa de desligamento voluntário (PDV), e incentivos à jornada reduzida e à licença sem remuneração, aos optantes pela jornada reduzida, excetuou-se a proibição da gerência de empresa privada.[11]

Por fim, a proibição de gerência de empresa prevista nos Estatutos, ao ser o fato minudentemente trazido aos autos, em trabalho conjunto da comissão apuradora e servidores acusados, nem sempre ensejará a sanção de demissão prevista no art. 132, da Lei 8.112/90.

O fato histórico, que não se repete mais, é representado pelos meios de prova em análise no processo disciplinar.

Examinado o comportamento do servidor público, em seus aspectos concretos, no exercício da razoabilidade/proporcionalidade, aplicar-se-á, dentro do conjunto de normas, à primeira vista aplicáveis ao caso, a mais adequada (e única?[12]).


[1] COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 389-90. [2] STJ. MS 10026/DF. Julgamento 9.8.2006. DJ 2.10.2006. Min. Relator: Arnaldo Esteves Lima. [3] STJ. MS 6808/DF. Julgamento: 24.5.2000. DJ 19.6.2000. Min. Relator: Felix Fischer. [4] STJ. MS 7491/DF. Julgamento: 18.2.2002. DJ 4.3.2002. Min. Relator: Fernando Gonçalves. [5] Lei 8112/90, art. 169: Verificada a ocorrência de vício insanável, a autoridade que determinou a instauração do processo ou outra de hierarquia superior declarará a sua nulidade, total ou parcial, e ordenará, no mesmo ato, a constituição de outra comissão para instauração de novo processo. [6] Súmula 473/STF: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. [7] STJ. MS 10026/DF. Julgamento: 9.8.2006. DJ 2.10.2006. Min. Relator: Arnaldo Esteves Lima. [8] Justiça Federal – TRF 4ª. AC – Apelação Civel. Proc. 2000.71.00.010539-2. Decisão: 29.6.2005. DJ 27.7.2005. Relator: Valdemar Capeletti. [9] Disponível no sítio: WWW.cgu.gov.br/imprensa/notícias/2006/noticia03006. Acesso: 19 mar. 2008. [10] Lei 8112/90, art. 117: Ao servidor é proibido: XVIII. Exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho. [11] Medida Provisória 2174/28, art.17: O servidor poderá, durante o período em que estiver submetido à jornada reduzida, exercer o comércio e participar de gerência, administração ou de conselhos fiscal ou de administração de sociedades mercantis ou civis, desde que haja compatibilidade de horário com o exercício do cargo. § 2º. Aos servidores de que trata o caput deste artigo aplicam-se as disposições contidas no art. 117 da Lei 8112 de 1990, à exceção da proibição contida em seu inciso X. [12] Segundo a Teoria da Adequabilidade Normativa, vinculado às circunstâncias do caso concreto, o julgador determina, dentre as normas a princípio aplicáveis ao caso, qual a única adequada: PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Sanções disciplinares – o alcance do controle jurisdicional. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

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