Confusão no aeroporto: parecia repartição pública! Autor(es): Claudio Rozza

No aeroporto, a recusa ao bom senso. Tumulto. Gritos. Filas. Gente, muita gente. Pessoas irritadas. Os atendentes da companhia aérea não têm explicações. Os controladores da torre ainda em estado de choque depois do desastre aéreo. Noite mal dormida, rostos pesados pelo sono. A um canto, crianças, entre malas e mochilas, em contraste, angelicamente, dormem no chão. O caos aéreo não abandona o noticiário, delírio da classe média.

De repente, o microfone, a pergunta, a surpresa e a resposta do servidor público saiu na TV, no rádio e no jornal:
- Fui obrigado a pegar ônibus para concluir a viagem. No aeroporto de Congonhas, uma confusão danada. Parecia repartição pública!

A entrevista repercutiu na repartição pública, local de lotação do servidor público.

O chefe, zeloso, concluiu que, na entrevista, o seu subordinado depreciou gratuita e publicamente repartições públicas, fato inadmissível, partindo de servidor público, que ganha o seu sustento justamente numa repartição pública.

Agindo desta maneira, na ponderação daquela autoridade, o servidor entrevistado feriu dever expressamente contido em estatuto do servidor público paranaense: lealdade e respeito às instituições constitucionais e administrativas a que servir (art. 279, V, Lei 6.174/70 [1]), ficando sujeito à pena de repreensão (art. 293,II, da mesma Lei [2]), com previsão no art. 291, II [3], e, como condição à aplicação da penalidade, seria necessária instauração da sindicância (art. 306, parágrafo único, inciso II, da citada Lei[4]).

Tais dispositivos encontram ressonância na Lei 8112/90, com relação aos servidores da União. É dever do servidor público federal ser leal às instituições a que servir (art. 116, II [5]). Seria, pelo raciocínio do zeloso chefe aplicável a pena de advertência (art. 127, da mesma Lei [6]), de acordo com o art. 129 [7]. O modo de apuração poderia ser mediante sindicância, eis que poderá ter como resultado aplicação de penalidade de advertência (art. 145 [8]).

Ora, contrariando o zeloso chefe, há que se observar que “pelo exercício irregular de suas atribuições, o funcionário responde civil, penal e administrativamente” (art. 286, Lei 6174/70). Ainda, “a responsabilidade administrativa resulta de atos praticados ou omissões ocorridas no desempenho do cargo ou função”. (art. 289). Tais disposições do vetusto estatuto dos funcionários públicos do Paraná estão presentes no regime jurídico dos servidores civis da União nos arts. 121 [9] e 124 [10] (Lei 8112/90).

A entrevista foi dada (tomada) não na qualidade de servidor, mas, de usuário do transporte aéreo. Segundo a reportagem, a fala, que teria sido ofensiva, foi dada após a constatação emitida pelo entrevistado, de que muita gente estava cancelando viagens por conta do caos aéreo e a tendência era de que a situação pioraria ainda mais.

Ou seja, não falou na qualidade de servidor público.

Outrossim, houve, como relatou a mídia, muitas manifestações, inclusive com agressões e quebra-quebras em vários aeroportos. Um verdadeiro caos, como nunca antes neste país. Houve dois acidentes, greve de responsáveis pelo radar, controladores (civis e militares), prática de overbooking pelas empresas de aviação. É uma constatação.

O transporte aéreo é um serviço público. O Estado não abdica da competência e da responsabilidade. Delega a execução, e, de acordo com a forma como ele mesmo regulamentou, exerce o controle. Sendo serviço público, no sentido lato, mais abrangente, aeroporto até se encaixaria no conceito de repartição pública. Sob este aspecto, não parecia ser. Era.

O autor da fala expressou-se em sentido geral, não se dirigiu especificamente a determinada repartição fiscal. Generalizou. Como em toda a generalização, cometeu erro. Por vezes, estupidamente, só conseguimos enxergar um aspecto da realidade. Somos infelizes nas declarações. Eis que não se podem esquecer as repartições públicas que são modelo de eficiência.

No ideário da população, na mídia, no cancioneiro popular, nos programas humorísticos, nas colunas políticas dos jornais/revistas, tais repartições constituem exceção. A ideia geral é de desorganização, monstruosidade branca, gigantismo e ineficiência.

Expressando-se como usuário, que paga avião e tem que andar de ônibus, após horas/dias no aeroporto, numa entrevista, parece ser razoável que uma pessoa normal, se expresse de modo até bem mais agressivo do que consta na reportagem. No âmbito das repartições, na relação de comando e subordinação, pode ocorrer que as palavras trocadas nem sempre são as mais amenas e delicadas, havendo até caso de agressão física, socos e hematomas.

O servidor, pois, não comparou confusão à sua repartição pública, sendo que o texto da lei dispõe sobre guardar respeito às instituições constitucionais e administrativas a que servir. Textos muito abertos, com conceitos jurídicos ditos indeterminados dão ensejo a pré-juízos, interpretações às vezes não completamente isentas de subjetivismo.

A fala do servidor, proferida num instante de muita confusão em que como usuário, como consumidor, estava sim, sendo malferido em seus direitos de cidadão, de usuário, de consumidor, com a indignação do homem médio, do homem comum, de quem, em idênticas situações, não se esperava que agisse de um modo necessariamente diferente. Em instante de equilíbrio emocional, sua frase infeliz seria considerada, no máximo, pela generalização, uma agressão à inteligência.

Outrossim, atribuir ao serviço público em geral a ineficiência e a confusão parece ser matéria comum na mídia até porque, em alguns estados, os hospitais funcionam precariamente, as prisões são verdadeiras universidades do crime, as delegacias de polícia desaparelhadas, alunos, sem escola, sem professor, e até, às vezes, por greves, o próprio INSS tem sido colocado na berlinda como repartição confusa. A própria receita federal, tão eficiente em cobrar impostos, por vezes, submete contribuintes a filas, a passar horas nas repartições e não ser atendido. Então, o comum, era o aeroporto funcionar bem. Não funciona mais. Antes, só se via fila no INSS. O jornal Gazeta do Povo, do dia 24 de outubro de 2007, página 23, trata de reportagem sobre a super-receita, em que foi dito que o atendimento privilegiava apenas casos emergenciais. Foi comunicado que demais contribuintes teriam que esperar o retorno dos funcionários às funções, após a greve, infelizmente. Retratava mãe e filha que conseguiram senha, mas tiveram que chegar às 5h40 da madrugada. E se dizia que havia pessoas que chegaram à 1h30. Na reportagem contribuinte/usuário afirmava que o serviço é sempre ruim. Hoje, se pretende a contratação de servidores civis e militares aposentados.

Isto, que parecia só acontecer em repartição pública, no ideário do cidadão comum, agora, também está acontecendo em aeroporto.

Tivesse havido o cometimento da infração pelo servidor público, após o devido processo legal, é que se poderia, se fosse o caso, aplicar penalidade. Todavia, o dispositivo legal é assaz abrangente, permite muitas interpretações, e com certeza, dentre elas, e que precisa ser provada, é que a afirmação foi tendenciosa, foi dolosa, foi intencionalmente proferida para denegrir a imagem da instituição a que serve. O que se pressupõe sempre é a boa-fé.

Outrossim, há que se fazer uma leitura aos dispositivos legais consoante o ordenamento jurídico inaugurado pela Constituição Federal/1988. A sindicância não é apenas uma condição necessária a uma pré-concebida penalização. Ela é que vai, mediante apuração, desde que houvesse justo motivo para instauração, apresentar, ao final, a materialidade e a autoria.

A penalização não se verifica antecipadamente. Não se instaura a sindicância para justificar aplicação de penalidade. Não. A sindicância vai dizer se o fato é irregular ou não. Se há ou não autoria. No caso, sequer indício de materialidade a ensejar instauração de sindicância, salvo se algo oculto não foi revelado. Foi uma infeliz expressão tomada em meio a um turbilhão de acontecimentos caóticos, que escapam a um caráter científico, particularidade que não encontra respaldo lógico, para, por indução, erigir-se em conclusão genérica, baseada em não arrazoada metodologia.

Penalização só se impõe depois do devido processo legal. Enquanto a sindicância é um procedimento, o processo exige contraditório.

No exíguo prazo proposto para a sindicância, ainda que observando o princípio da instrumentalidade das formas, num período de 15 dias improrrogáveis sob pena de responsabilização, do anacrônico estatuto do servidor público paranaense, é muito difícil que se possa, na prática, observar contraditório, ampla defesa, nos prazos razoáveis.

Numa leitura constitucional, a sindicância, principalmente nos moldes da Lei 6174/70, é apenas investigatória, não se prestando à aplicação de penalidade. Para o que se exige instauração de processo administrativo disciplinar.

Ainda que houvesse justa causa relativa à existência de um fato irregular subsumido a uma infringência, que no máximo poderia possibilitar uma advertência, no atual ordenamento paranaense, feita a filtragem constitucional, somente mediante processo poderia haver algum tipo de penalização, ainda que branda, e não, por sindicância.


P.S. Eventual semelhança com fatos e personagens concretos, eis que a ilustração do texto foi pinçada de inúmeras notícias esparsas, filmes, romances, de histórias, estórias, imagens, extratos de realidades, ficções, necessariamente tratar-se-ia de coincidência.

[1]Lei 6174/70 (PR). Art. 279. São deveres do funcionário: V- lealdade e respeito às instituições constitucionais e administrativas a que servir. [2] Lei 6174/70 (PR). Art. 293. São cabíveis penas disciplinares: II- a de repreensão, aplicada por escrito, em caso de desobediência ou falta de cumprimento dos deveres e reincidência em falta que tenha resultado em pena de advertência. [3] Lei 6174/70 (PR). Art. 291. São penas disciplinares: II- repreensão. [4] Lei 6174/70 (PR). Art. 306. A autoridade que tiver ciência da irregularidade no serviço público estadual, ou de faltas funcionais, é obrigada, sob pena de se tornar co-responsável, a promover, de imediato, sua apuração. Parágrafo único. A apuração poderá ser efetuada: I-de modo sumário, se ocaso configurado for passível de aplicação de penalidades prevista nos incisos I a IV, do art. 291, quando a falta for confessada, documentalmente provada ou manifestamente evidente; II-mediante sindicância, como condição de imposição de pena, nos casos possivelmente enquadráveis nos dispositivos referidos no inciso anterior, desde que não ocorra qualquer das hipóteses ali formuladas. [5] Lei 8112/90. Art. 116. São deveres do servidor: II- ser leal às instituições que servir. [6] Lei 8112/90. Art. 127. São penalidades disciplinares: I-advertência. [7] Lei 8112/90. Art. 129. A advertência será aplicada por escrito, nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incs. I a VIII, e XIX, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave. [8] Lei 8112/90. Art. 145. Da sindicância poderá resultar: II-aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 dias. [9] Lei 8112/90. Art. 121. O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições. [10] Lei 8112/90. Art. 124. A responsabilidade civil-administrativa resulta de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função.
Artigo publicado na JUS NAVIGANDI

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